domingo, 3 de julho de 2011

História da vida real - as férias de Narcisa

Poucos verbos expressam com tanta veemência seu significado como ‘viajar’. Quero dizer que isto implica em sair de órbita, curtir o diferente e o novo e, sim, enfrentar alguns contratempos.
Muito recentemente estive na Grã-Bretanha, e mais especificamente na Escócia. Não fui à procura do monstro do lago Ness, a Nessie (claro que o monstro é feminino), no entanto a encontrei.
Chama-se Narcisa, é bastante madura, ou deveria sê-lo, de nacionalidade vizinha à nossa e afeita a falsas intimidades. Saliento que já me senti solitária e insegura por diversas vezes, mas felizmente não sofro de transtorno de ansiedade generalizada. Narcisa sofre, e seria trágico se não fosse cômico.
Procurou com suas próprias mãos um país de língua inglesa sem o menor domínio. Revoltou-se porque os nativos não compreendiam seu idioma. No embarque para Edimburgo literalmente parou o trânsito, no momento em que foi detida com xampu e condicionador de cerca de 200 ml cada um em bagagem de mão. Aos berros, proclamava em sua língua natal que estava sendo afrontada. Pagou multa, trinta e cinco libras a menos. E embarcou os malditos frascos em seu devido lugar.
Alguns dias depois estávamos em Glasgow e a madame contratara a mesma empresa para trasladá-la até o aeroporto. Começou o enredo de novela mexicana, embora esta não fosse sua nacionalidade. Deu ordens a não mais poder ao motorista, eficiente senhor paquistanês. Sempre em seu idioma incompreensível para ele, mas não para mim. Invadiu o assento do motorista desconsiderando a mão inglesa. Sentou-se ao lado do motorista, mesmo diante de um assento disponível no banco de trás, para escândalo do condutor. Falava a não mais poder, até quando aquele senhor deu graças aos céus por ter tocado seu celular (na Escócia não é proibido usar Bluetooth à direção). É claro que a maluca imaginou que ele tivesse iniciado uma interessante conversa com ela. Não adiantou gesticular: acelerando bastante, em franco desespero, o dono do veículo nos deixou no aeroporto, aliviado.
Narcisa desceu do carro e não fechou a porta. Pragejou em alto e bom som porque diabos não estava em frente à entrada do aeroporto. Simplesmente porque era proibido parar ali. Parou várias pessoas na calçada para lhes perguntar onde era a entrada, embora estivesse diante das inúmeras placas indicativas. A princípio ignorou minha presença, eu, que estava ali a acudi-la, até descobrir que o check-in eletrônico era demais para suas habilidades. Aos gritos, sem qualquer exagero, exigia-me explicações. Ocorria que naquele momento eu estava empenhada em assegurar o meu embarque. Uma funcionária correu em seu socorro – ou ao meu – e, ao terminar, para surpresa geral, ganhou um abraço inconveniente (parece que funcionários de aeroporto não esperam por manifestações afetuosas).
Bem, a infeliz passou à minha frente e se encarregou de despachar as bagagens. Foi aí que aconteceu o inexplicável. De repente passou a entender inglês, e muito bem. Cena inimaginável, bradava, cancelado? Como, cancelado? Minha viagem é hoje! Não podem fazer isso comigo! Sapateava e não falava em inglês, naturalmente. Mais uma vez, interrompeu a fila (que mulher de parar o trânsito!). Ao descobrir que não iria mesmo embarcar porque o aeroporto de sua capital estava fechado devido à grande quantidade de cinzas emitidas pelo vulcão Puyehue (do país vizinho ao dela), chorava alto, bem alto. Os funcionários dos guichês ao lado expressavam desde incredulidade até raiva.
Recusava-se a deixar o guichê, mesmo encaminhada para o atendimento necessário às vítimas de cancelamento. Berrava que nunca mais voltaria àquele país. Tudo muito desorganizado, afinal, foi providenciada acomodação, refeições e garantia de decolagem no dia seguinte desde que o aeroporto de destino fosse reaberto. Recusando-se a entender, fiz-me de interprete, confesso que exausta de todo aquele circo. Ao receber o voucher, o show continuou.
‘Meu passaporte! Ficaram com meu passaporte’. Diga-se que o vernáculo em língua inglesa é bastante aproximado. Pode-se ter uma idéia do alvoroço entre os solícitos funcionários da companhia aérea do tal país algoz. Neste momento, sem qualquer piedade, eu, pessoa farta de tudo aquilo, coloquei de forma ímpia minha mão dentro da bolsa da bruxa e tomei a palavra, digamos, com elevação de alguns decibéis em relação à minha fala habitual: ‘seu passaporte está aqui! Aqui! Veja!’.
Pacientemente encaminhei a coisa ao hotel, em frente ao aeroporto. Como errar deve ser inumano, não prestei a mínima atenção ao lhe apontar o hotel Holiday Inn – a louca se hospedaria no Holiday Inn Express, atrás do primeiro. Corri para o portão de embarque e, após passar a bolsa pelos raios-X, dei-me conta, pela janela, de meu erro crasso.
Só espero que madame tenha sido detida, presa, encarcerada pelo escândalo que certamente fez ao descobrir o engano. Tudo culpa minha.
Narciso acha feio o que não é espelho.

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